Filosofia Medieval Prof Mauro de Souza
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA MEDIEVAL
1. Contexto
“A
filosofia medieval corresponde ao longo período histórico que vai do final do
helenismo (secs. IV-V) até o Renascimento e o início do pensamento moderno
(final do séc. XV e séc. XVI), aproximadamente dez séculos, portanto. Na
verdade, contudo, a maior parte da produção filosófica da Idade Média, o que
realmente conhecemos como “filosofia medieval”, esta concentrada entre os sécx
XII e XIV, período do surgimento e desenvolvimento da escolástica” (Danilo
Marcondes. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998, p.103).
Ao
longo do século V d.C., o império romano do Ocidente sofreu ataques constantes
dos povos bárbaros. Os sucessivos e violentos confrontos, principalmente as
invasões germânicas, levaram ao esfacelamento. Desenvolveu-se, a partir de
então, uma nova estruturação da vida social europeia, que corresponde ao período medieval.
O
cristianismo é uma religião que surgiu no interior do império romano, a partir
do ano 1 de nossa era, com os seguidores dos ensinamentos de Jesus Cristo.
Constituía originalmente uma corrente heterodoxa
do judaísmo e, como tal, manteve o que os cristãos chamam de Velho Testamento
(as escrituras hebraicas) como parte de seu livro sagrado (a Bíblia), mas
incorporou a ele o Novo Testamento (as escrituras gregas), redigido pelos
apóstolos e primeiros cristãos durante o século I d.C. (COTRIM; FERNANDES,
2010, p.203). De outro lado, surgiram pensadores cristãos que defenderam o
conhecimento da filosofia grega, percebendo a possibilidade de utilizá-la como
instrumento a serviço do cristianismo. Conciliado com a fé cristã, o estudo da
filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os descrentes e derrotar os
hereges com as armas racionais da argumentação lógica. O objetivo era convencer
os descrentes, tanto quanto possível, pela razão, para depois fazê-los aceitar
a imensidão dos ministérios divinos, somente acessíveis pela fé.
Nesse
contexto, a filosofia medieval pode ser dividida em quatro momentos principais:
1) os dos pais apostólicos, do início do cristianismo
(séculos I e II), entre os quais se incluem os apóstolos, que disseminavam a
palavra de Cristo, sobretudo em relação a temas morais. Entre estes se destaca
a figura de Paulo pelo volume e
valor literário de suas epístolas (cartas escritas pelos apóstolos);
2) os dos pais apologistas (séculos III e IV),
que faziam a apologia do cristianismo contra a filosofia pagã. Entre os
apologistas destacam-se Orígenes, Justino e Tertuliano, este o mais
intransigente na defesa da Fe contra a filosofia grega;
3) o da patrística (de meados do século IV ao
século VIII),que pretendia uma conciliação entre a razão e a fé. Destacam-se
aqui a figura de Agostinho e a
influência da filosofia platônica.
4) o da escolástica (do século IX a XVI), em
que se buscou uma sistematização da filosofia cristã, sobretudo a partir da
interpretação da filosofia de
Aristóteles, com destaque para a figura de Tomás de Aquino.
Sua
característica fundamental é a ênfase nas questões teológicas, destacando-se
temas como: o dogma da Trindade, a encarnação de Deus-filho, a liberdade e a
salvação, a relação entre fé e razão (COTRIM; FERNANDES, 2010, p.205).
2. Patrística
Segundo
Cotrim; Fernandes (2010, p.206), no processo de desenvolvimento do
cristianismo, tornou-se necessário explicar seus preceitos às autoridades
romanas e ao povo em geral. A igreja sabia que esses preceitos não podiam
simplesmente ser impostos pela força. Tinham de ser apresentados de maneira
convincente, mediante um trabalho de pregação e conquista espiritual. Foi assim
que os primeiros pais da Igreja
empenharam-se na elaboração de diversos textos sobre a fé e a revelação cristã.
O conjunto desses textos ficou conhecido como patrística, por terem sido escritos principalmente por esses
grandes pais da igreja. Um das principais correntes da filosofia patrística,
inspirada na filosofia greco-romana, tentou munir a fé de argumentos racionais,
ou seja, buscou a conciliação entre o cristianismo e o pensamento pagão. Seu
principal expoente foi Agostinho,
posteriormente consagrado santo pela igreja católica.
3. Agostinho de Hipona
Segundo
Cotrim; Fernandes (2010), Aureliano Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste,
província romana situada na África, e faleceu em Hipona, hoje localizada na
Argélia. Nessa última cidade viria a ocupar o cargo de bispo da igreja
católica. Em sua obra, Agostinho argumenta em favor da supremacia do espírito sobre o corpo, a matéria. Para ele, a alma
teria sido criada por Deus para reinar sobre o corpo, dirigindo-o para a
prática do bem. O pecador, entretanto, utilizando-se do livre-arbítrio,
costumaria inverter essa relação, fazendo o corpo assumir o governo da alma.
Provocaria, com isso, a submissão do espírito à matéria, o que seria, para
Agostinho, equivalente à subordinação do eterno ao transitório, da essência à
aparência. A verdadeira liberdade estaria na harmonia das ações humanas com a
vontade de Deus. Ser livre é servir a Deus, diz Agostinho, pois o prazer de
pecar é a escravidão.
Boas obras ou graça divina? Segundo o
filósofo, o ser humano que trilha a vida do pecado só consegue retornar aos
caminhos de Deus e da salvação mediante a combinação de seu esforço pessoal de
vontade e a concessão, imprescindível, da graça
divina. Sem a graça de Deus, o ser humano nada pode conseguir. Essa graça,
no entanto, seria concedida apenas aos predestinados
à salvação.
A
questão da graça, tal como colocada pelo filósofo, marcou profundamente o
pensamento medieval cristão. E a doutrina da predestinação à salvação foi,
posteriormente, adotada por alguns ramos da teologia protestante (Reforma
Protestante). Na mesma época de Agostinho, outro teólogo, Pelágio, afirmava que a boa vontade e as boas obras humanas seriam
suficientes para a salvação individual. Seus ensinamentos constituíram a
doutrina do pelagianismo, contra a qual se colocou Agostinho. No concílio de
Cartago do ano 417, o papa Zózimo condenou o pelagianismo como heresia e adotou
a concepção agostiniana de necessidade da graça divina, doada livremente por
Deus aos seus eleitos. A condenação do pelagianismo explica-se pelo fato de que
conserva a noção grega de autonomia da vida moral humana, isto é, a noção de
que o indivíduo pode salvar-se por si só, sendo bom e fazendo boas obras, sem a
necessidade da ajuda divina. Essa noção chocava-se com a ideia de submissão
total do ser humano ao Deus cristão, defendida pela Igreja. O fato de assim a
Igreja ter se pronunciado por tal doutrina assinalou o fim da ética pagã de
toda a filosofia helênica.
Uma
consequência disso é a forma como se passa a enfatizar a interioridade. Enquanto na filosofia grega o indivíduo se
identificava com o cidadão (isto é, o ser humano social, político), a filosofia cristã agostiniana enfatiza no
indivíduo sua vinculação pessoal com Deus, a responsabilidade de cada indivíduo
pelos próprios atos e exalta a salvação individual.
Liberdade e pecado - outro aspecto
fundamental da filosofia agostiniana é o entendimento de que a vontade é uma força que determina a
vida e não uma função específica ligada ao intelecto, tal como diziam os
gregos. Agostinho contrapõe-se, dessa forma, ao intelectualismo moral, que teve sua expressão máxima em Sócrates.
Isso significa que, de acordo com Agostinho, a liberdade humana é própria da vontade e não da razão – e é nisso
que reside a fonte do pecado. A
pessoa peca porque usa de seu livre-arbítrio para satisfazer uma vontade má, mesmo sabendo que tal atitude é
pecaminosa.
Precedência da fé - Agostinho também
discutiu a diferença fé cristã e razão, afirmando que a fé nos faz crer em
coisas que nem sempre entendemos pela razão: “creio tudo o que entendo, mas nem
tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que
creio conheço” (Agostinho, De Magistro,
p.319). Baseando-se no profeta bíblico Isaías,
dizia ser necessário crer para
compreender, pois a fé ilumina os caminhos da razão, e a compreensão nos confirma a crença
posteriormente. Isso significa que, para Agostinho, a fé revela verdades ao ser
humano de forma direta e intuitiva. Vem depois a razão, esclarecendo aquilo que
a fé já antecipou. Há portanto, para ele, uma precedência da fé sobre a razão.
Influência helenística - o pensamento
agostiniano reflete, em grande medida, os principais passos de sua trajetória
intelectual anterior à conversão ao catolicismo, quando sofreu a influência do helenismo.
1. Do maniqueísmo o filósofo herdou uma
concepção dualista no âmbito moral,
simbolizada pela luta entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a alma e o corpo.
2. Do ceticismo ficou a permanente desconfiança nos dados dos sentidos,
isto é, no conhecimento sensorial.
3. Do platonismo Agostinho assimilou a
concepção de que a verdade, como conhecimento eterno, deveria ser buscada intelectualmente no “mundo das ideias”.
Por isso, defendeu a via do autoconhecimento,
o caminho da interioridade, como
instrumento legítimo para a busca da verdade.
4. Escolástica
No
século VIII, Carlos Magno, rei dos francos coroado imperador do Ocidente em 800
pelo papa Leão III, organizou o ensino e fundou escolas ligadas às instituições
católicas. Com isso, a cultura greco-romana, até então guardada nos mosteiros,
voltou a ser divulgada, passando a ter uma influência mais marcante nas
reflexões da época. Era o período da renascença
carolíngia. Adotou-se nessas
escolas, a educação romana como modelo. Começaram a ser ensinadas matérias como
trivium (gramática, retórica e
dialética) e o qradrivium (geometria,
aritmética, astronomia e música), todas elas, no entanto, submetidas à teologia. Foi assim, no ambiente
cultural dessas escolas e das primeiras universidades do século XI, que surgiu
uma produção filosófico-teológica denominada escolástica (palavra derivada de escola).
A
partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de forma profunda no pensamento
escolástico, marcando-o definitivamente. Isso se deve à descoberta de muitas
obras de Aristóteles, desconhecidas até então, e à tradução para o latim de
algumas delas, diretamente do grego.
No
período escolástico, a busca de harmonização entre a fé cristã e a razão
manteve-se como problema básico de especulação filosófica. Nesse contexto, a
escolástica pode ser divida em três fases:
Primeira fase (do século IX ao fim do século XII) –
confiança na perfeita harmonia entre fé e razão;
Segunda fase (do século XIII ao princípio século
XIV) – elaboração de grandes sistemas filosóficos, merecendo destaque as obras
de Tomás de Aquino. Nessa fase, considera-se que a harmonização entre fé e
razão pode ser parcialmente obtida.
Terceira fase (do século XIV até o século XVI) –
decadência da escolástica, marcada por disputas que realçam as diferenças entre
fé e razão.
5. Tomás de Aquino
A
filosofia de Tomás de Aquino (1226-1274) – o tomismo – parece ter nascido com
objetivos claros: não contrariar a fé. De fato, sua finalidade era organizar um
conjunto de argumentos para demonstrar e defender as revelações do
cristianismo. Assim, Tomás de Aquino reviveu em grande parte o pensamento
aristotélico em busca de argumentos que explicassem os principais aspectos de
fé cristã. Enfim, fez da filosofia de Aristóteles um instrumento a serviço da religião
católica, ao mesmo tempo em que transformou essa filosofia numa síntese
original.
Tomás
de Aquino enfatizou a importância da realidade
sensorial. Em relação ao processo de conhecimento dessa realidade,
ressaltou uma série de princípios considerados básicos, dentre os quais se
destacam:
- Princípio da não contradição – o ser é e ou não é. Não existe nada que possa ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista;
- Princípio da substância – na existência dos seres podemos distinguir a substância (a essência propriamente dita de uma coisa, sem a qual ela não seria aquilo que é) do acidente (a qualidade não essencial, acessória do ser);
- Princípio da causa eficiente – todos os seres que captamos pelos sentidos são seres contingentes, isto é, não possuem em si próprios a causa eficiente de suas existências. Portanto, para existir,o ser contingente depende de outro ser que representa sua causa eficiente, chamado de ser necessário.
- Princípio da finalidade – todo ser contingente existe em função de uma finalidade, de uma “razão de ser”. Enfim, todo ser contingente possui uma causa final;
- Princípio do ato e da potência – todo ser contingente possui duas dimensões, o ato e potência. O ato representa a existência atual do ser, aquilo que está realizado e determinado. A potência representa a capacidade real do ser, aquilo que não se realizou mas pode realizar-se. É a passagem da potência para o ato que explica toda e qualquer mudança.
Em
seu livro mais famoso, a Suma teológica, Tomás de Aquino propõe cinco provas da
existência de Deus:
1)
O primeiro motor – tudo aquilo
que se move é movido por outro ser. Por sua vez, esse outro ser, para que se
mova, necessita também que seja movido por outro ser, e assim sucessivamente.
Se não houvesse um primeiro ser movente, cairíamos em um processo indefinido.
Logo, conclui Tomás de Aquino, é necessário chegar a um primeiro ser movente
que não seja movido por nenhum outro. Esse
ser é Deus;
2)
A causa
eficiente
– todas as coisas existentes no mundo não possuem em si a causa eficiente de
suas existências. Devem ser consideradas efeitos de alguma causa. Tomás de
Aquino afirma ser impossível remontar indefinidamente à procura das causas
eficientes. Logo, é necessário admitir a existência de uma primeira causa
eficiente, responsável pela sucessão de efeitos. Essa causa primeira é Deus.
3)
Ser necessário e
ser contingente –
esse argumento, uma variante do segundo, afirma que todo ser contingente, do
mesmo que o existente, pode deixar de existir. Ora, se todas as coisas que
existem podem deixar de ser, então, alguma vez, nada existiu. Mas, se assim
fosse, também agora nada existiria, pois aquilo que não existe somente começa a
existir em função de algo que já existia. É preciso admitir, então, que há um
ser que sempre existiu, um ser absolutamente necessário, que não tenha fora de
si a causa de sua existência, mas, ao contrário, que seja a causa necessária de
todos os seres contingentes. Esse ser
necessário é Deus.
4)
Os graus de
perfeição –
em relação à qualidade de todas as coisas existentes, pode-se afirmar que há
graus diversos de perfeição. Assim, estabelecemos que tal coisa é melhor que
outra, ou mais bela, ou mais poderosa, ou mais verdadeira, etc. Ora, se uma
coisa possui “mais” ou “menos” determinada qualidade positiva, isso supõe que
deva existir um ser com o máximo dessa qualidade, no nível da perfeição.
Devemos admitir, então, que existe um ser com o máximo de bondade, de beleza,
de poder, de verdade, sendo, portanto, um ser máximo e pleno. Esse ser é Deus.
5)
A finalidade do
ser
– todas as coisas brutas, que não possuem inteligência própria, existem na
natureza cumprindo uma função, um objetivo, uma finalidade, tal como a flecha
orientada pelo arqueiro. Devemos admitir, então, que existe algum ser
inteligente que dirige todas as coisas da natureza para que cumpram seu
objetivo. Esse ser é Deus.
Comentários
Postar um comentário